Eu nunca soube ao certo o que queria da minha vida, fiz uma faculdade por
fazer, namorava por conveniência e agia por instinto, mas eu sempre soube
exatamente o que eu não queria, filhos incluíam-se nessa lista... Também sempre
fui daquelas que acredita ser dona do próprio destino, e que nada que possa
ocorrer mudaria meu cotidiano, a menos que eu escolhesse mudá-lo... Só que pra
mim não foi assim, tudo fora do esquadro, uma gravidez indesejada de uma pessoa
que eu nem conhecia e nem sequer gostava, e que mesmo assim insistiu em ficar
do meu lado apoiando e dando força pra tudo que eu precisasse. Ao me dar conta
me sentia presa a tanta coisa que nem era possível distingui-las, sempre fui
tão "eu", agora eu era tão "eles"...
Odiava o fato de ter algo crescendo dentro de mim e me dando chutinhos, que
as vezes machucavam, odiava as náuseas e as estrias, odiava mais ainda quando
me reprimiam e tentavam me dizer como agir, e no auge do meu egoismo, a culpa era
inteira do meu bebê. A raiva que eu mesma provocava e direcionava a todos em nome dessa gravidez
era tão grande que as vezes sentia vontade de arrancar os cabelos, e eu
arrancava, e também sumir, e eu sumia, mas com o simples intuito de me sentir
um pouco sozinha, eu nunca me sentia sozinha...
Não sei afirmar em que tempo aceitei o fato de ter um bebê, e eu tinha ódio
de mi m mesma pela irresponsabilidade, e em alguns surtos de consciência eu
procurava felicidade com tudo isso, e por vezes conseguia.
Esse bebezinho nem tinha nascido, e eu direcionava a ele e ao pai dele todos
os problemas da minha vida, eu estava certa e o mundo todo errado, ninguém
tinha o direito de desestabilizar o meu dia a dia.
Fui egoísta ao ponto de desejar perdê-lo, e não sei dizer se fui forte
demais por possuir todo esse ódio e ainda cuidar para que sempre estivesse bem
e junto comigo, ou fraca demais por esperar que a natureza fizesse uma coisa
que eu logo poderia ter feito. E a natureza fez, internei em uma madrugada com
ameaça de aborto, sem dor nem sangue, apenas a bolsa de líquidos do bebê saindo
de dentro de mim... E eu tive medo, mais medo que eu já senti em qualquer
situação já vivida, mas o medo não era por mim, e sim por ele... O nome disso é
incompetência istmo cervical, meu colo uterino não possui força para se manter
fechado conforme o aumento do peso da bolsa e do bebe, e quanto maior o
tempo de gestação, maior a dificuldade e maior o risco de parto, ou no caso das
vinte e uma semanas, maior o risco de aborto.
A primeira notícia era que a gestação não seria levada até o fim, e isso não
era justo, ele tinha que nascer bem, ele é meu, é uma vida, e ele era forte e
queria ficar ali dentro, ele me chutava e isso era o maior sinal de amor que
ele podia me dar.
Encaminhada para uma ultrassonografia, com a mesma roupa da madrugada,
ciente que perderia o bebê. Era um menininho, já pesando 500 gramas, um bebê
grande para a idade gestacional. Já possuía 3 cm de dilatação no colo, era só
esperar atingir 5 cm pra ele nascer, meu bebê também não estava encaixado, o
que permitia mais alguns dias, quem sabe horas aqui dentro de mim. As suas
perninhas estavam para a direita e a cabecinha para a esquerda, e foi só isso
que o manteve ali, ele quis ficar e eu lutaria para que isso fosse possível.
Mas as minhas lutas não deveriam exigir tanto esforço, e muito menos
sacrifícios, e ao escutar a conduta médica eu quis novamente desistir, afinal,
quem ficaria alguns meses deitada, tomando banho e fazendo necessidades na
cama? Mas foi assim, mesmo querendo, ninguém me deixou decair, dei entrada no
hospital na quarta feira, as 17:00 h, com medo do que viria pra mim e pro bebê,
culpa de tudo que estava acontecendo, e vontade de ir pra casa.
Chorei bem menos do que esperava chorar, e não fiquei abatida na maioria dos
momentos, talvez a minha irresponsabilidade sirva para algo, não entender
realmente a gravidade das coisas.
Me mantive deitada por 27 dias, e ao contrário do que eu esperava, fui
apenas piorando, a dilatação aumentava, agora eu tinha sangramentos intensos e
dor, mas pra compensar o bebê crescia, ganhava peso e maiores condições
de sobreviver.
Os sangramentos iniciaram conforme o colo do útero dilatava, sem dor, ele
apenas dilatava, e a dor veio quando iniciaram as contrações, algum tempo
depois do sangue. As vezes era como perder todo o sangue do corpo por ali,
sangue quente e vivo. As contrações eram inibidas com medicamentos, mas elas
causavam a abertura maior do colo, era cada vez mais dor, e mais espaço. Recebi
em torno de 40 picadinhas, quem sabe mais, ou menos, eu já não tinha mais veias
boas para os acessos, a musculatura ardia em injeções, e quase sem perceber,
meus braços e pernas atrofiavam devido a falta de esforço, quando me dei conta
eu tinha secado, virado pele e osso, com uma barriga grande.
Nas ultimas semanas as dores eram mais intensas, tão fortes que nem lágrimas
vinham aos olhos, não conseguia falar, apenas gemer e retorcer meu corpo. Não
entendia a origem daquelas dores, eram facilmente controladas, e isso
significava que não eram sérias, só que eu já tinha 7 cm de dilatação,
contração, e o meu bebê não nascia.
Na madrugada do dia 15/02 ele teve que sair, e foi mais rápido que eu
esperava, ele era pequeno, minha dilatação era enorme, e as contrações muito
fortes, não podendo mais serem inibidas devido a toxidade do medicamento usado
por longo tempo. Eram 5:00 h, no quarto mesmo, minha madrinha segurando minha
mão direita, uma técnica em enfermagem do lado esquerdo, o médico do lado
direito me dizendo o que fazer, "respirar, contração, trancar, forçar,
sair", a sensação era horrível, eu já não possuía força muscular para
empurrá-lo para fora, foram duas vezes, e eu escutei um chorinho tão lindo que
era inexplicável. As dores da contração acabaram naquele momento que o bebê saiu,
um bebê minusculo de 25 semanas, chamado de prematuro extremo, com 700 gramas.
Não pude nem vê-lo direito, logo foi entregue a pediatra para serem tomadas as
medidas necessárias para sua sobrevivência, não possuía nenhum órgão
funcionando perfeitamente, e aperfeiçoaria tudo isso na UTI Neo Natal, era
necessário um tubo que levava oxigênio aos pulmões, uma sonda que levava
alimentação até o estômago, um acesso venoso para os medicamentos, luz e ar
quente para manter a temperatura que era difícil mesmo dentro da encubadora.
A gente tinha se separado, e agora só dependia dele e da equipe médica
responsável, ele foi levado e eu fiquei ali caída, com a placenta ainda dentro
de mim, a dor para a retirada foi ainda mais forte que as contrações, uma mão
do médico dentro do meu útero e a outra no meu umbigo, precionando, rodando e
puxando, a minha garganta arranhava em gritos, quando terminou eu tinha
adrenalina demais para dormir, e força de menos para me mover, não sentia
nenhum músculo do meu corpo, tinha medo pelo bebê, e culpa por não ter
conseguido ficar mais tempo com ele.
Pude vê-lo ao meio dia, só vê-lo, já estava limpa, usando fraldas e ainda
sangrando, não conseguia me manter em pé, precisava ser levada sempre com uma
cadeira de rodas. Não conseguia pensar em nada ao enxergá-lo, só tinha uma
louca vontade de chorar, mas não fiz, encontrei também alguma fé dentro de mim
para rezar e pedir por ele, afinal, Deus não poderia ser tão cruel.
"As chances não são grandes, 30% apenas, mas faremos todo o possível",
e mesmo com um percentual tão pequeno eu sabia que ele tinha vindo pra
preencher a minha vida, e que um bebê que tinha chego até ali, não iria
desistir e estaria forte e pronto pra ir pra casa em alguns meses, ele chegaria
ao fim daquele horror.
Mesmo em um emaranhado de esperança, fé e medo, eu ainda tinha espaço para a
culpa, culpada por em algum momento atribuir a ele alguma desgraça da minha
vida, eu que fui fraca por não querê-lo, e as vezes entendia tudo o que estava
acontecendo como uma prova pra mim mesma, pra mostrar que eu o queria sim, mais
do que eu imaginava, e então isso me dava mais raiva, porque ele só estava ali
pra provar pra mim que eu o amava. Olhando ele, eu soube que ficaria os nove
meses no hospital, levaria 80 picadas de agulha, sentiria dor a gestação
inteira se ele estivesse bem, era só ele que importava.
Hoje ele completou um mês de vida, um mês de UTI, um mês de luta, e nos seus
altos e baixos ele surpreende todo mundo, se mostra guerreiro e com vontade de
viver, e possui mais força que muita gente grande, mesmo daquele tamanhinho. Pra
ele foi dada a vida, e pra mim uma segunda chance, de provar o quanto eu o amo e o quero
bem, e que sem ele, nenhuma vida tem sentido...