sábado, 21 de abril de 2012

Amor Incondicional

Eu nunca soube ao certo o que queria da minha vida, fiz uma faculdade por fazer, namorava por conveniência e agia por instinto, mas eu sempre soube exatamente o que eu não queria, filhos incluíam-se nessa lista... Também sempre fui daquelas que acredita ser dona do próprio destino, e que nada que possa ocorrer mudaria meu cotidiano, a menos que eu escolhesse mudá-lo... Só que pra mim não foi assim, tudo fora do esquadro, uma gravidez indesejada de uma pessoa que eu nem conhecia e nem sequer gostava, e que mesmo assim insistiu em ficar do meu lado apoiando e dando força pra tudo que eu precisasse. Ao me dar conta me sentia presa a tanta coisa que nem era possível distingui-las, sempre fui tão "eu", agora eu era tão "eles"...

Odiava o fato de ter algo crescendo dentro de mim e me dando chutinhos, que as vezes machucavam, odiava as náuseas e as estrias, odiava mais ainda quando me reprimiam e tentavam me dizer como agir, e no auge do meu egoismo, a culpa era inteira do meu bebê. A raiva que eu mesma provocava e direcionava a todos em nome dessa gravidez era tão grande que as vezes sentia vontade de arrancar os cabelos, e eu arrancava, e também sumir, e eu sumia, mas com o simples intuito de me sentir um pouco sozinha, eu nunca me sentia sozinha...

Não sei afirmar em que tempo aceitei o fato de ter um bebê, e eu tinha ódio de mi m mesma pela irresponsabilidade, e em alguns surtos de consciência eu procurava felicidade com tudo isso, e por vezes conseguia.

Esse bebezinho nem tinha nascido, e eu direcionava a ele e ao pai dele todos os problemas da minha vida, eu estava certa e o mundo todo errado, ninguém tinha o direito de desestabilizar o meu dia a dia.

Fui egoísta ao ponto de desejar perdê-lo, e não sei dizer se fui forte demais por possuir todo esse ódio e ainda cuidar para que sempre estivesse bem e junto comigo, ou fraca demais por esperar que a natureza fizesse uma coisa que eu logo poderia ter feito. E a natureza fez, internei em uma madrugada com ameaça de aborto, sem dor nem sangue, apenas a bolsa de líquidos do bebê saindo de dentro de mim... E eu tive medo, mais medo que eu já senti em qualquer situação já vivida, mas o medo não era por mim, e sim por ele... O nome disso é incompetência istmo cervical, meu colo uterino não possui força para se manter fechado conforme o aumento do peso da bolsa e do bebe, e quanto maior o  tempo de gestação, maior a dificuldade e maior o risco de parto, ou no caso das vinte e uma semanas, maior o risco de aborto.

A primeira notícia era que a gestação não seria levada até o fim, e isso não era justo, ele tinha que nascer bem, ele é meu, é uma vida, e ele era forte e queria ficar ali dentro, ele me chutava e isso era o maior sinal de amor que ele podia me dar.

Encaminhada para uma ultrassonografia, com a mesma roupa da madrugada, ciente que perderia o bebê. Era um menininho, já pesando 500 gramas, um bebê grande para a idade gestacional. Já possuía 3 cm de dilatação no colo, era só esperar atingir 5 cm pra ele nascer, meu bebê também não estava encaixado, o que permitia mais alguns dias, quem sabe horas aqui dentro de mim. As suas perninhas estavam para a direita e a cabecinha para a esquerda, e foi só isso que o manteve ali, ele quis ficar e eu lutaria para que isso fosse possível. Mas as minhas lutas não deveriam exigir tanto esforço, e muito menos sacrifícios, e ao escutar a conduta médica eu quis novamente desistir, afinal, quem ficaria alguns meses deitada, tomando banho e fazendo necessidades na cama? Mas foi assim, mesmo querendo, ninguém me deixou decair, dei entrada no hospital na quarta feira, as 17:00 h, com medo do que viria pra mim e pro bebê, culpa de tudo que estava acontecendo, e vontade de ir pra casa.

Chorei bem menos do que esperava chorar, e não fiquei abatida na maioria dos momentos, talvez a minha irresponsabilidade sirva para algo, não entender realmente a gravidade das coisas.

Me mantive deitada por 27 dias, e ao contrário do que eu esperava, fui apenas piorando, a dilatação aumentava, agora eu tinha sangramentos intensos e dor, mas pra compensar o bebê crescia, ganhava peso e  maiores condições de sobreviver.

Os sangramentos iniciaram conforme o colo do útero dilatava, sem dor, ele apenas dilatava, e a dor veio quando iniciaram as contrações, algum tempo depois do sangue. As vezes era como perder todo o sangue do corpo por ali, sangue quente e vivo. As contrações eram inibidas com medicamentos, mas elas causavam a abertura maior do colo, era cada vez mais dor, e mais espaço. Recebi em torno de 40 picadinhas, quem sabe mais, ou menos, eu já não tinha mais veias boas para os acessos, a musculatura ardia em injeções, e quase sem perceber, meus braços e pernas atrofiavam devido a falta de esforço, quando me dei conta eu tinha secado, virado pele e osso, com uma barriga grande.

Nas ultimas semanas as dores eram mais intensas, tão fortes que nem lágrimas vinham aos olhos, não conseguia falar, apenas gemer e retorcer meu corpo. Não entendia a origem daquelas dores, eram facilmente controladas, e isso significava que não eram sérias, só que eu já tinha 7 cm de dilatação, contração, e o meu bebê não nascia. 

Na madrugada do dia 15/02 ele teve que sair, e foi mais rápido que eu esperava, ele era pequeno, minha dilatação era enorme, e as contrações muito fortes, não podendo mais serem inibidas devido a toxidade do medicamento usado por longo tempo. Eram 5:00 h, no quarto mesmo, minha madrinha segurando minha mão direita, uma técnica em enfermagem do lado esquerdo, o médico do lado direito me dizendo o que fazer, "respirar, contração, trancar, forçar, sair", a sensação era horrível, eu já não possuía força muscular para empurrá-lo para fora, foram duas vezes, e eu escutei um chorinho tão lindo que era inexplicável. As dores da contração acabaram naquele momento que o bebê saiu, um bebê minusculo de 25 semanas, chamado de prematuro extremo, com 700 gramas. Não pude nem vê-lo direito, logo foi entregue a pediatra para serem tomadas as medidas necessárias para sua sobrevivência, não possuía nenhum órgão funcionando perfeitamente, e aperfeiçoaria tudo isso na UTI Neo Natal, era necessário um tubo que levava oxigênio aos pulmões, uma sonda que levava alimentação até o estômago, um acesso venoso para os medicamentos, luz e ar quente para manter a temperatura que era difícil mesmo dentro da encubadora.

A gente tinha se separado, e agora só dependia dele e da equipe médica responsável, ele foi levado e eu fiquei ali caída, com a placenta ainda dentro de mim, a dor para a retirada foi ainda mais forte que as contrações, uma mão do médico dentro do meu útero e a outra no meu umbigo, precionando, rodando e puxando, a minha garganta arranhava em gritos, quando terminou eu tinha adrenalina demais para dormir, e força de menos para me mover, não sentia nenhum músculo do meu corpo, tinha medo pelo bebê, e culpa por não ter conseguido ficar mais tempo com ele.

Pude vê-lo ao meio dia, só vê-lo, já estava limpa, usando fraldas e ainda sangrando, não conseguia me manter em pé, precisava ser levada sempre com uma cadeira de rodas. Não conseguia pensar em nada ao enxergá-lo, só tinha uma louca vontade de chorar, mas não fiz, encontrei também alguma fé dentro de mim para rezar e pedir por ele, afinal, Deus não poderia ser tão cruel.

"As chances não são grandes, 30% apenas, mas faremos todo o possível", e mesmo com um percentual tão pequeno eu sabia que ele tinha vindo pra preencher a minha vida, e que um bebê que tinha chego até ali, não iria desistir e estaria forte e pronto pra ir pra casa em alguns meses, ele chegaria ao fim daquele horror. 

Mesmo em um emaranhado de esperança, fé e medo, eu ainda tinha espaço para a culpa, culpada por em algum momento atribuir a ele alguma desgraça da minha vida, eu que fui fraca por não querê-lo, e as vezes entendia tudo o que estava acontecendo como uma prova pra mim mesma, pra mostrar que eu o queria sim, mais do que eu imaginava, e então isso me dava mais raiva, porque ele só estava ali pra provar pra mim que eu o amava. Olhando ele, eu soube que ficaria os nove meses no hospital, levaria 80 picadas de agulha, sentiria dor a gestação inteira se ele estivesse bem, era só ele que importava.



Hoje ele completou um mês de vida, um mês de UTI, um mês de luta, e nos seus altos e baixos ele surpreende todo mundo, se mostra guerreiro e com vontade de viver, e possui mais força que muita gente grande, mesmo daquele tamanhinho. Pra ele foi dada a vida, e pra mim uma segunda chance, de provar o quanto eu o amo e o quero bem, e que sem ele, nenhuma vida tem sentido...



Escrito dia 15/03/2012