sábado, 19 de dezembro de 2015

Me tire pra dançar

Aí você pega na mão dela. A que está livre do drink ou da latinha de cerveja. E a tira pra dançar. Um forró, uma salsa, um samba a dois. Algo que sirva como um belo pretexto pra deixar os corpos assim, bem coladinhos. Que é pra você já sentir quantos miligramas de sal por litro tem o suor dela. Ou a quantos batimentos por minuto trabalha o coração dela. Ou se o cheiro dela é amadeirado, cítrico, floral, frutal, uma mistura disso tudo ou uma combinação de nada disso – até porque eu aposto uma rodada de cerveja que você não sabe a diferença entre essas porras todas. E se uma só música não for suficiente pra toda essa análise quântico-químico-corporal, dança mais uma. 

A noite é uma criança, dizem os sábios, que sempre são boêmios. E a próxima música é boa, dizem os sensatos. Porque quem não gosta de Caetano, pra mim, é porque falta um parafuso. E é Caetano cantando a menina do anel de lua e estrela, que definitivamente não é a moça que dança contigo. Mas danem-se os anéis – no final da noite, o que ficam mesmo são os dedos.  
   
E se tem um time de futebol que joga bonito no mundo, ah, meu filho, são os dedos. Nada de seleção brasileira, nada de Barcelona, nada de Corinthians. Convocação boa mesmo é mata-piolho, fura-bolo, pai-de-todos, mindinho e seu-vizinho. Então coloca todos eles pra entrarem em campo – seja deslizando suavemente sobre as costas dela, seja segurando com firmeza aquele braço desnudo enquanto vocês caetaneiam, seja empunhando a latinha de cerveja enquanto ela vai ao banheiro. E quando Caetano terminar de falar, aí, sim, você começa – afinal, dizem por aí que o verdadeiro sábio é aquele que sabe escutar em vez de simplesmente esperar a sua vez de falar. Pode começar perguntando o nome dela – o nome que você vai repetir duas ou três vezes enquanto ela te morde o pescoço na parede da entrada de casa. Ou elogiando o sorriso que com certeza ela, moça sensata, abriu quando Caetano começou a cantar. Ou sugerindo um brinde, e quando ela perguntar a quê, simplesmente responda: ao nosso encontro.        

E então pede um beijo, porque um beijo é uma reza prum marujo que se preza. E aí, se assim ela quiser, vocês rezam. E que sejam feitas as vossas vontades, assim na Terra como no céu. Todas elas, sem exceção. Com aquele capricho que o diabo gosta. E que ela não se deixe intimidar por aquele papo idiota de gente mais ocupada com a vida alheia do que com o próprio prazer e, caso sinta vontade, não tenha vergonha de convidá-lo pra terminar essa dança com o traje de gala mais especial de todos: aquele com os quais todos nós viemos ao mundo. Que, então, a sua barba deslize pelo pescoço dela. E que a língua dela deslize pelo seu peito. E que as roupas, de alguma maneira mágica e inexplicável (provavelmente devido ao teor alcoólico do sangue de vocês), deslizem para o chão. E que vocês se mordam, se molhem, se esquentem, se esfriem, se transpirem. E se inspirem pra, talvez, começar tudo de novo no segundo seguinte. Ou no minuto seguinte. Ou na manhã seguinte.    


  Porque quando você finalmente entende o que é química, você descobre que entrelaçar bons corpos nunca é demais. Que uma troca de olhares é capaz de arrepiar os pelos da nuca. Que um toque despretensioso provoca terremotos. Que um beijo demorado, assim, bem devagarinho, inicia um incêndio. Que gozar é coisa que a gente faz com o corpo inteiro. E que gente de bem não transa pra apagar fogo nenhum – gente de bem é aquela que abre os braços e se deixa consumir pelas labaredas. Ou você prefere mesmo continuar aí, no morno conforto do seu sofá?

Eu queria ser sua lembrança bonita

Eu sei, a memória recente não é minha aliada. Nas nossas últimas conversas, beirei a psicose. Justo eu, que por tanto tempo defendi que seguíssemos sendo dois, jurei que morreria sem a sua respiração. Implorei descontroladamente, escrevi cartas a próprio punho, poderia até ter exposto a dor que eu sentia numa galeria qualquer só pra que o mundo te detestasse. Enlouqueci.

Se ainda houver tempo – e sempre acho que há – te peço perdão. Não fiz jus a uma história tão leve. Não tive dignidade, não tive forças. Te culpei por uma infelicidade que foi o monstro da expectativa quem criou. Esse monstro engoliu minha autoestima, minha decência, meu senso de ridículo. Isso não é desculpa. É só um pedido de desculpas.

E, se não for pedir demais – talvez seja, vai – eu te peço pra ocupar na sua estante do passado um lugar de lembrança bonita. Não que eu seja melhor, ou que tenha te causado amor maior do que seus outros amores mais duradouros e intensos que nós. Por isso, não quero ser sua lembrança indescritível, seu sexo inenarrável, sua paixão avassaladora. Quero só ser uma lembrança bonita que mereça estar na memória, não ser apenas um álbum amarelado de momentos esquecidos.

Uma recordação leve como uma mensagem no meio de uma tarde difícil, um papo na madrugada sobre a intensidade da vida ou um samba de uma nota só. Como completar a palavra esquecida que completa tão bem o refrão. Como um abraço silencioso e duradouro, um carinho na ponta da orelha que estremece qualquer certeza.

Queria que você ouvisse João Gilberto cantando “o amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais” e sorrisse. Sorrisse porque sabe que eu adoro essa música, porque sabe que o amor metamorfoseou em lembrança bonita e a flor pode até ter virado só uma semente de novo. Mas o sorriso é sempre sorriso porque não há como não ser feliz por termos vivido aqueles dias de entrega.

Ou que você passasse pelo banco da praça onde me disse que não sabia como era possível que eu te amasse tanto e sentisse a brisa te dizer que talvez eu nem tenha te amado tanto quanto minhas palavras repetidas insistiam em falar, mas que foi delicioso passar duas horas no frio do inverno sentindo o maior calor do mundo.

Desejo que você não se negue a sentar na praia que escolhemos pra ser nossa, mesmo sabendo que no vai e vem do mar sobram amores dignos daquele pedaço do paraíso. Ela vai estar sempre ali e continua bonita, como a lembrança que eu gostaria de ser pra ti.

Eu queria ser pra você a certeza de que o passado valeu a pena. Não por ser eterno, não por ser melhor ou mais importante que o presente (até porque isso não faz sentido nem pra você nem pra mim). Mas porque nessas lembranças leves estão a certeza que estivemos lá. Inteiros, iguais, entregues. E há nisso uma beleza que nem o pior dos afastamentos deve apagar.